quarta-feira, 7 de maio de 2008

VELHA MANHÃ COM GALO COZINHANDO

“No preguntarme nada. He visto que las cosas cuando buscan su curso encuentran su vacío.”
Lorca
“A obrigação de produzir aliena a paixão de criar ”

Raoul Vaneigem

1
Fui convidado a me retirar da fábrica, a largar as rodas dentadas, perfuratrizes
Vinte e quatro horas por dia-a-dia. Um outro qualquer afundando em ruas corriqueiras,
Em busca da festa vermelha de éter e sombras, do veio das pílulas SMILE, do doce veneno
Carnal, do osso deitado de Santa Maria Juana...Parei diante do silêncio da torre do relógio, acendi um cigarro e peidei com mui gosto. Procurando outra dimensão menos comprimida, dimensão do grito, da órbita, da loura hasteada, pois, naquele tempo palavras eram pequenas descobertas, porque o equilébrio pedia o líquido do equilíbrio e eu cozinhava o galo. Nada mais construtivo que cozinhar o galo. Naquele tempo meus fantasmas freqüentavam a mesma livraria, então eu ia para lá! E Lá encontrei o pianíssimo fantasma
De Federico Lorca, mais precisamente em sua Nova Iorque de gente mecânica, eternamente Assombrada pela estátua da liberdade, pela sua mão sem sonho, pela sua boca sem herbário, pela sua chama sem fósforo, pela sua bunda sem lua, pela sua presença sem lírio... Primeiras bolhas de silêncio... Eu e minha esquelética timidez capricorniana. Um desfile de vertigens perseguia-me, desertos perseguiam-me, inocentes nádegas procuravam meus olhos trimestrais, enquanto eu folheava um livro, guardador de verdadeiros desfiladeiros e milenar pulmão. Com dedos leves, leves, leves como cavalos alados atolados na abóbada celeste de Deus nosso senhor eternamente sentado.
Assim, o poeta sorria de lado. Eu o imaginava perdido na democrática solidão de uma multidão de ossos amontoados e sem descanso, com uma arma no peito e muitas palavras locomotoras; poeta que enterraram dentro da noite, num fosso mais ou menos vertical... Entretanto, naquele instante, o poeta ia a desforra: estripando sadiamente franco-ditadores sorridentes, sal e azares da vida, pino cheio de morte, y otros generalíssimos com la mierda em los lábios, em festivas madrugadas de piano, guitarra e danzas antifeixistes y a fotografia da lua carcomida era dele e também tudo que a lua não explica, ninguém poderia roubá-la do poeta, nem mesmo a interminável falange da caveira.

2a
Lua, lua, lua.
Lua afogada entre os espinhos da insônia
Na incompreensível curva do leite
Nas mãos adormecidas das meninas que fogem do mar
Lua, lua, lua. Sombra chinesa em busca das coisas imprevistas
No infindável azul que é amarelo no fim da estátua
No insistente passeio dos sonâmbulos que perderam o último ônibus
Nos silenciosos animais que desferem seus punhais no absoluto ouvido d’água
Nas flores rubras raiadas de brancos desesperos
Numa gota de Norte da pálida amante em seu ataúde dominical
Lua? Que lua? Lua sem o cavaleiro de Jorge
Que salta da fotografia sem calda de pavão
Antes européia de ser devorada pelo olho canino de mil aturdidos
Antes do final sentado da missa de vidro
Antes mesmo mão dos lugares mais afastados pela valsa
No exato e tardio momento de simpática espiga e vocação para esfinge
No exato e adormecido instante de fauno
Nas mil e nove maneiras de enlouquecer a mulher abandonada por aquele que se diz vento,
Na moça com seios nus olhando para o chão e porta entreaberta
Naquilo que ainda se diz dos assassinos, dos sacerdotes, dos semideuses lúbricos,
E dos cogumelos paridos na semana que sem mais nem menos chegou na segunda-feira
Lua no focinho e no vazio do cavalo cristalino
Antes de ser alimentada por três sanguessugas:
Uma com pés de chumbo e ossos de vida eterna;
Outra com máquinas amorosas que deram o prego
E uma terceira perdida lavando a burra na infinitude do prostíbulo
Lua onde pesadelos estão pendurados e as luvas não se avessam
Onde os velhos burgueses se dedicam às nódoas do esquife
(oh, sonora parede cuja caixa de ressonância é um boi apodrecido no confessionário)
Atrás de sua sombra vivem dez anos entrelaçados
Seu longiagudo silêncio e o predicante grito do fuzil
Os chifres da surra sobre um ataúde recém-domesticado
Ásperos ébrios débeis ácidos e aqueles que já nasceram sabendo
Magnatas que limpam o cu com a língua das mansões
Lua dezesseis de junho de mil novecentos e noventa e nove
Por que trazes no bolso o penúltimo gemido do açougue?
Ah, porque à noite as facas habitam a mesma carne
As crianças crescem na antiga armadura
As mães mudam de cor até se tornarem ervas
Os padrastos se multiplicam às portas da igreja
Os terremotos dormem em tudo que é turvo
Os macacos devoram o interminável cérebro do gerente do banco
As mentiras só existem no final dos objetos que estalam
As ruas se agrupam em torno da ração das paisagens
Todos são tios depois do infinitésimo pedaço de bolo
Os camaleões seguem dourando entre os gregos da distância
Porque a única deusa da casa procura sua outra metade purpúreo-esverdeada
Porque um milhão de Louise Brooks já faz parte da família dos colibris hipnotizadores de fálus
E os rios atravessam o mar em pedacinhos de esponja
Lua! Deus? Em que lua descanças? Quem é o messias que escondes em teu joelho?
Dá-nos a lua! Somente a lua! Tantas vezes em Nova Iorque e outras tantas em qualquer
Lugar que não se encontra nos mapas.
Vai-se ela entrenuvens deixando solitário eclipse
Vai-se divindade docemente irritada e prenha nas esquinas
Silenciosa lâmpada que venera a escuridão do peixe
Guia que antecede a vaca e intercede junto ao poeta em favor de um cão sem luz.

2b
Um breve adeus aguardava a erva umedecida
Y a lua sorria de lado em seu mármore
Y as pessoas oravam oravam e oravam despidas da cintura pra baixo
Y as pedras se escondiam atrás dos milagres
Na hora do breve adeus

Mas diziam as mulheres que as colunas mastigavam o medo
Y as últimas casas se aproximavam com cuidado
Y a arquitetura trocava o girassol por um punhado de granito
Y o cadáver do filho pródigo tornou-se inquebrantável
Y os cadáveres dos sonhadores dormiam apoiados no muro do cemitério
Na hora do breve adeus

1b
Eehh! O título do quadro: velha manhã com galo cozinhando.
Y o sol caminhava livraria adentro y o sol caminhava em meus olhos y uma desconhecida caminhava em meu corpo y me perguntava sobre os meios de desnudar a vida y o sol sorria de lado y eu me desfazia de minha farda y suas mãos dissolutas brincavam com a serpente recém-colhida em meu corpo y suas formas dissolutas se dissolviam lentamente entre estantes de porventura. Enfim, eu deixava a livraria expatriado, pronto para encarar meu vazio industrial, pronto para enfrentar o outro-bestial-multiplicado-por-mil e um mundo vendido. Desapareci entre as engrenagens da manhã, devidamente lubrificadas. Desapareci simplesmente e ninguém percebeu.

Roberto Bessa (03/01/94)

sábado, 3 de maio de 2008

TODA NUDEZ SERÁ MARMORIZADA


A noite debandava úmida
A luz golpeava meus olhos com lentura
Luz decepada em meu corpo
Luz na ponta do piano fantasma

Tudo era gravitante no palácio das tetas
No pequeno jardim dos disfarces
A luz corria solta pela rua

Sugava estrelas da manhã
Manhã de inexistente outono
E velhinhas aparoquiadas

Sentia-me contraste com minha armadura
Sondava o mármore que vestia
Um corpo imprevisto e esgotado
Que se mostrava aos poucos.

collage: A FLAGELAÇÃO DA NOVIÇA
por Roberto Bessa

sexta-feira, 2 de maio de 2008

ENQUETE


A situação é a seguinte : você está na parada do ônibus e tem uma estranha sensação que algo inusidado vai acontecer. Ocasionalmente, você olha para uma casa que se localiza logo em frente do ponto onde você se encontra. No terraço desta casa, encostada no parapeito, uma bunda redondamente lhe observa. Bem atrás dela, no horizonte, três pessoas saltam, talvez voem, em direção aos seus olhos. No muro da mesma casa se lê :o ser humano nasce do desejo e não da necessidade. O ônibus passou desbercebido.Você sua frio, olha para o sol que lhe parece invencível, tudo lhe parece insuficiente, e em consequência, fonte de morte. A bunda e as pessoas que saltam continuam lá, no mesmo local ; Talvez você tenha encontrado nelas as últimas peças do quebra-cabeça e consiga ver uma imagem completa de seu momento de desespero. Então, você se pergunta : 1. Quem somos? 2. De onde viemos? 3. Para onde vamos?