quinta-feira, 26 de junho de 2008

CONTO



UMA CARTA DE MARAT (FRAGMENTO)


“Caro Arimáspios Smiles
O me perditum! Eis o vômito do dia: Ponta seca. Matéria negra (mortificatio). Meus pêsames, mas o mundo não tem jeito. Tenho sono, mas não durmo (quid est somnus, gelidae nisi mortis imago). Opressão do homem pelo homem (interfectio). Flor de pústulas (putrefactio), pequeno sangue dormente que corre nas veias do poeta barbado. Resta-nos aguardar o relâmpago (combustio) praticado por outrem. Muitas viscosidades na vida secreta dos monstros, As gárgulas despregam de SUAS catedrais (incineratio). E haja monstro! A turba é facilmente manipulada por seus próprios monstros. Perditissimus ego sum omnium in terra!!! Onde estar a seqüência de bons momentos, que encadeados, nos levam a uma espécie de eterno presente? (calcinatio) Por outro lado o trágico; prefiro-o ao tédio. Bem sabes... “ (nesse instante uma bala perfura sua cabeça.)


DURANTE A EXECUÇÃO DO TESTAMENTO DE MARAT


“Pobre Marat.” Disse Guilhotine à senhora Goretti Smiles. “Uma bala perdida o acertou em sua banheira de espanto. Esses malditos projéteis estão por toda parte”.Continuou a falar um pouco nervosa. Uma vez encontrei um deles dentro de uma caixa de conselhos em pó. Pobre Marat. Mas não foi por falta de aviso. Eu mesma o havia alertado quanto a essas inexplicáveis metamorfoses. Outro dia um relâmpago entrou sorrateiramente em seu banheiro e transfigurou momentaneamente o seu rosto. Nesse mesmo dia reconheci os traços de um conhecido torturador da época da ditadura e alguns minutos depois o pavoroso semblante de um célebre verdugo protegido pelo vaticano. Pobre Marat, amarrou o bode e pegou o bonde...O diabo é que esses projeteis do inferno se multiplicam numa velocidade assustadora e ainda tem gente que se orgulha dos adesivos de buraco de bala pregados em suas carroças. Bando de idiotas! ”É verdade”. Dizia a sra Goretti.


O MONSTRORISTA RATTIONE


“... mais do que se locupletar...” Parei um instante nessa estranha palavra quando se deu a confusão. O Sr. Sandoval Gusmão, motorista de coletivo há quase vinte anos, discutia com um sujeito truculento que queria por bem ou por mal ter razão. Não sei que barbeiragem cometera, mas queria porque queria ter razão. O trânsito infernal, às vezes, invoca o demônio da razão que incorpora em tipos como esse aí. Seguiu-se um bate-boca rápido e os passageiros que estavam atrás do motorista pareciam apreensivos, com receio que o pior acontecesse. O cheio-até-a-tampa-de-razão vociferava, tentava, a trancos e barrancos, convencê-lo de que estava com a razão. De repente seu rosto começou a envermelher-se; a cabeça inflava lentamente como se fosse explodir, assim como seus olhos e ombros; as pessoas começavam a ir para a parte de trás do ônibus, assustadas com a estranha transformação que se realizava inopinadamente. A boca do individuo (se é que posso chamá-lo assim) crescera e tomara a forma de uma boca de tubarão com três fileiras de dentes afiadíssimos que se encaixavam quando ele parava de falar. Armara-se, ainda, de ferrões escomunais que saiam de suas costas, cobertas por uma espécie de musgo purulento que exalava fedores de águas estagnadas. Seus olhos esbugalhados brilhavam como candeias e trespassavam o Sr. Sandoval cheios de furor. À medida que a besta-fera tentava convencê-lo que tinha razão, seu aspecto se modificava crescendo em fealdade e horror. Horribile dictu! Eu não conseguia mais descrevê-lo tamanha a rapidez com que se transformava, nunca vira algo tão assustador e prepotente quanto aquela aberração que explodia em metamorfoses constantes e cada vez mais horripilantes. Mais medonho ainda era sua insistência, seu furioso empenho em impor ao outro sua verdade implacável. Foi então que se ouviu um estampido de arma de fogo, curto e seco. A maioria dos passageiros se agachou; outros tentaram, desesperadamente, sair do ônibus, mas não conseguiram (ninguém pensou em usar as janelas de emergência). Quando me levantei, o ogro já saíra desembestado em seu automóvel, ainda vi sua cabeça, uma enorme e repugnante bolha de carne verde e pelosa, do lado de fora de sua maquina ensandecida. As pessoas gritavam enfurecidas para que alguém anotasse a placa do veículo. O coletivo saiu finalmente e os passageiros discutiam o acontecido, tranqüilizavam-se pouco a pouco. O trocador comentava que o ser abjeto tinha disparado um tiro contra o motorista que por pouco não fora atingido. Soube-se, no dia seguinte, que a bala se perdera no caminho, mas fora encontrada no corpo sem vida de Marat.
collage: DADA POst (Roberto Bessa)

quarta-feira, 4 de junho de 2008

PORCELANA



O relógio da torre devora as horas quando quatro poetas resolvem descruzar os braços. Isto é o que importa. “Sigamos, pois, embrulhados no celofane, tropeçando sem cessar em questões indesatáveis”, diz o mais agitado. Distinta época, muito remota e bastante trabalhada pela erosão; pessoas preeminentes buscam ressonâncias na sala de encontros da casa do poeta anfitrião. Um punhado de luzes, reminiscências de lugares imaginados, odores adormecidos se desprendem dos cantos mais improváveis. Na parede, a surpresa ocupa os espaços destinados a determinados quadros. Sentam-se, os poetas, em volta de uma mesa sem começo nem fim. Porcelana, a mulher do anfitrião, entra rosa em trajes mínimos, fluindo orquideante com olhares de me leva consigo. Quer dizer algo e dirá em algum momento imprevisto, contudo o sangue é indizível. Marat traz consigo a banana das promessas e o não-consigo-escapar-deste-encantamento. A mulher, incerta e prazenteira, delicia-se com pupas e mel enquanto os outros fumam, ocultam-se e observam o seu compasso, a maciez da profunda floresta incrivelmente encoberta por um sumário baby-doll. Ela deita de bruços sobre a mesa-oceano, prepara-se para o arco-íris no sentido estrito e atapetado da palavra. Marat não consegue tirar os olhos de suas formas superabundantes e quase impossíveis. Um happening? Dos gestos lançados ao acaso, o arranjo mais belo: gestos ornamentais e purpúreo-convidativos. Marat, terrivelmente seduzido, decide participar do jogo dos instintos e cobre-se de musgo. Os outros caem na ilusão da morte de papel, ou seja, ocupam-se com os origamis da morte e em lançar milho para os jesuítas que teimam em pousar na janela. Pois bem, Marat completamente coberto de musgo, apenas os braços de fora e os olhos eretos. Segura ritualisticamente a banana e empenha-se em acompanhar a evolução das conchas arredondadas e o veludo dobrado pela brisa. Introduz, firmemente, a banana na boca de Porcelana, fazendo funcionar seus mecanismos ofegantes. Suponho que as surpresas já ocupem todos os orifícios da bela mulher. Repentinamente, sina de poeta, clímax cutâneo, o anfitrião põe uma música (Ragtime Waltz, de Mauricio Kagel) que serve de base para a encenação de sua esposa alvoroçada. Ela ergue um pouco suas nádegas e começa a expelir, no ritmo da musica, pequenas e multicoloridas borboletas.
Prosa inspirada no poema “Metamorfose” de Mário Gomes, figura ímpar que perambula pelas ruas de fortaleza. Para saber mais sobre o poeta: http://poetamariogomes.blogspot.com/

quarta-feira, 7 de maio de 2008

VELHA MANHÃ COM GALO COZINHANDO

“No preguntarme nada. He visto que las cosas cuando buscan su curso encuentran su vacío.”
Lorca
“A obrigação de produzir aliena a paixão de criar ”

Raoul Vaneigem

1
Fui convidado a me retirar da fábrica, a largar as rodas dentadas, perfuratrizes
Vinte e quatro horas por dia-a-dia. Um outro qualquer afundando em ruas corriqueiras,
Em busca da festa vermelha de éter e sombras, do veio das pílulas SMILE, do doce veneno
Carnal, do osso deitado de Santa Maria Juana...Parei diante do silêncio da torre do relógio, acendi um cigarro e peidei com mui gosto. Procurando outra dimensão menos comprimida, dimensão do grito, da órbita, da loura hasteada, pois, naquele tempo palavras eram pequenas descobertas, porque o equilébrio pedia o líquido do equilíbrio e eu cozinhava o galo. Nada mais construtivo que cozinhar o galo. Naquele tempo meus fantasmas freqüentavam a mesma livraria, então eu ia para lá! E Lá encontrei o pianíssimo fantasma
De Federico Lorca, mais precisamente em sua Nova Iorque de gente mecânica, eternamente Assombrada pela estátua da liberdade, pela sua mão sem sonho, pela sua boca sem herbário, pela sua chama sem fósforo, pela sua bunda sem lua, pela sua presença sem lírio... Primeiras bolhas de silêncio... Eu e minha esquelética timidez capricorniana. Um desfile de vertigens perseguia-me, desertos perseguiam-me, inocentes nádegas procuravam meus olhos trimestrais, enquanto eu folheava um livro, guardador de verdadeiros desfiladeiros e milenar pulmão. Com dedos leves, leves, leves como cavalos alados atolados na abóbada celeste de Deus nosso senhor eternamente sentado.
Assim, o poeta sorria de lado. Eu o imaginava perdido na democrática solidão de uma multidão de ossos amontoados e sem descanso, com uma arma no peito e muitas palavras locomotoras; poeta que enterraram dentro da noite, num fosso mais ou menos vertical... Entretanto, naquele instante, o poeta ia a desforra: estripando sadiamente franco-ditadores sorridentes, sal e azares da vida, pino cheio de morte, y otros generalíssimos com la mierda em los lábios, em festivas madrugadas de piano, guitarra e danzas antifeixistes y a fotografia da lua carcomida era dele e também tudo que a lua não explica, ninguém poderia roubá-la do poeta, nem mesmo a interminável falange da caveira.

2a
Lua, lua, lua.
Lua afogada entre os espinhos da insônia
Na incompreensível curva do leite
Nas mãos adormecidas das meninas que fogem do mar
Lua, lua, lua. Sombra chinesa em busca das coisas imprevistas
No infindável azul que é amarelo no fim da estátua
No insistente passeio dos sonâmbulos que perderam o último ônibus
Nos silenciosos animais que desferem seus punhais no absoluto ouvido d’água
Nas flores rubras raiadas de brancos desesperos
Numa gota de Norte da pálida amante em seu ataúde dominical
Lua? Que lua? Lua sem o cavaleiro de Jorge
Que salta da fotografia sem calda de pavão
Antes européia de ser devorada pelo olho canino de mil aturdidos
Antes do final sentado da missa de vidro
Antes mesmo mão dos lugares mais afastados pela valsa
No exato e tardio momento de simpática espiga e vocação para esfinge
No exato e adormecido instante de fauno
Nas mil e nove maneiras de enlouquecer a mulher abandonada por aquele que se diz vento,
Na moça com seios nus olhando para o chão e porta entreaberta
Naquilo que ainda se diz dos assassinos, dos sacerdotes, dos semideuses lúbricos,
E dos cogumelos paridos na semana que sem mais nem menos chegou na segunda-feira
Lua no focinho e no vazio do cavalo cristalino
Antes de ser alimentada por três sanguessugas:
Uma com pés de chumbo e ossos de vida eterna;
Outra com máquinas amorosas que deram o prego
E uma terceira perdida lavando a burra na infinitude do prostíbulo
Lua onde pesadelos estão pendurados e as luvas não se avessam
Onde os velhos burgueses se dedicam às nódoas do esquife
(oh, sonora parede cuja caixa de ressonância é um boi apodrecido no confessionário)
Atrás de sua sombra vivem dez anos entrelaçados
Seu longiagudo silêncio e o predicante grito do fuzil
Os chifres da surra sobre um ataúde recém-domesticado
Ásperos ébrios débeis ácidos e aqueles que já nasceram sabendo
Magnatas que limpam o cu com a língua das mansões
Lua dezesseis de junho de mil novecentos e noventa e nove
Por que trazes no bolso o penúltimo gemido do açougue?
Ah, porque à noite as facas habitam a mesma carne
As crianças crescem na antiga armadura
As mães mudam de cor até se tornarem ervas
Os padrastos se multiplicam às portas da igreja
Os terremotos dormem em tudo que é turvo
Os macacos devoram o interminável cérebro do gerente do banco
As mentiras só existem no final dos objetos que estalam
As ruas se agrupam em torno da ração das paisagens
Todos são tios depois do infinitésimo pedaço de bolo
Os camaleões seguem dourando entre os gregos da distância
Porque a única deusa da casa procura sua outra metade purpúreo-esverdeada
Porque um milhão de Louise Brooks já faz parte da família dos colibris hipnotizadores de fálus
E os rios atravessam o mar em pedacinhos de esponja
Lua! Deus? Em que lua descanças? Quem é o messias que escondes em teu joelho?
Dá-nos a lua! Somente a lua! Tantas vezes em Nova Iorque e outras tantas em qualquer
Lugar que não se encontra nos mapas.
Vai-se ela entrenuvens deixando solitário eclipse
Vai-se divindade docemente irritada e prenha nas esquinas
Silenciosa lâmpada que venera a escuridão do peixe
Guia que antecede a vaca e intercede junto ao poeta em favor de um cão sem luz.

2b
Um breve adeus aguardava a erva umedecida
Y a lua sorria de lado em seu mármore
Y as pessoas oravam oravam e oravam despidas da cintura pra baixo
Y as pedras se escondiam atrás dos milagres
Na hora do breve adeus

Mas diziam as mulheres que as colunas mastigavam o medo
Y as últimas casas se aproximavam com cuidado
Y a arquitetura trocava o girassol por um punhado de granito
Y o cadáver do filho pródigo tornou-se inquebrantável
Y os cadáveres dos sonhadores dormiam apoiados no muro do cemitério
Na hora do breve adeus

1b
Eehh! O título do quadro: velha manhã com galo cozinhando.
Y o sol caminhava livraria adentro y o sol caminhava em meus olhos y uma desconhecida caminhava em meu corpo y me perguntava sobre os meios de desnudar a vida y o sol sorria de lado y eu me desfazia de minha farda y suas mãos dissolutas brincavam com a serpente recém-colhida em meu corpo y suas formas dissolutas se dissolviam lentamente entre estantes de porventura. Enfim, eu deixava a livraria expatriado, pronto para encarar meu vazio industrial, pronto para enfrentar o outro-bestial-multiplicado-por-mil e um mundo vendido. Desapareci entre as engrenagens da manhã, devidamente lubrificadas. Desapareci simplesmente e ninguém percebeu.

Roberto Bessa (03/01/94)

sábado, 3 de maio de 2008

TODA NUDEZ SERÁ MARMORIZADA


A noite debandava úmida
A luz golpeava meus olhos com lentura
Luz decepada em meu corpo
Luz na ponta do piano fantasma

Tudo era gravitante no palácio das tetas
No pequeno jardim dos disfarces
A luz corria solta pela rua

Sugava estrelas da manhã
Manhã de inexistente outono
E velhinhas aparoquiadas

Sentia-me contraste com minha armadura
Sondava o mármore que vestia
Um corpo imprevisto e esgotado
Que se mostrava aos poucos.

collage: A FLAGELAÇÃO DA NOVIÇA
por Roberto Bessa

sexta-feira, 2 de maio de 2008

ENQUETE


A situação é a seguinte : você está na parada do ônibus e tem uma estranha sensação que algo inusidado vai acontecer. Ocasionalmente, você olha para uma casa que se localiza logo em frente do ponto onde você se encontra. No terraço desta casa, encostada no parapeito, uma bunda redondamente lhe observa. Bem atrás dela, no horizonte, três pessoas saltam, talvez voem, em direção aos seus olhos. No muro da mesma casa se lê :o ser humano nasce do desejo e não da necessidade. O ônibus passou desbercebido.Você sua frio, olha para o sol que lhe parece invencível, tudo lhe parece insuficiente, e em consequência, fonte de morte. A bunda e as pessoas que saltam continuam lá, no mesmo local ; Talvez você tenha encontrado nelas as últimas peças do quebra-cabeça e consiga ver uma imagem completa de seu momento de desespero. Então, você se pergunta : 1. Quem somos? 2. De onde viemos? 3. Para onde vamos?

terça-feira, 22 de abril de 2008

COLLAGE


Rodrigo Mota nos enviou esta collage.


“A tarefa do surrealismo é arrancar
a linguagem do sistema repressivo
e fazer dela um instrumento de gozo”

Karel Teige

In Textos de Afirmação e de Combate do
Movimento Surrealista Mundial. (coletânea organizada por Mário Cesariny)

ver ainda:

sexta-feira, 18 de abril de 2008

JOYCE MANSOUR: GRITOS E DILACERAÇÕES II


Em português, pouquíssimas traduções de sua obra. Alguns poemas esparsos na web e nos livros: Poesia Érotica em Tradução (José Paulo Paes); Arcanos da Poesia Surrealista ( José Pierre e Jean Schuster. Tradução Antônio Houaiss); e Júlio César uma História Nociva (tradução: Aníbal Fernandes).


As maquinações cegas de tuas mãos
Em meus seios trêmulos
Os lentos movimentos de tua língua paralisada
Em minhas orelhas patéticas
Toda minha beleza afogada em teus olhos sem pupilas
A morte em teu ventre comendo meu cérebro
Tudo isso faz de mim uma moça muito estranha.

de Cris – 1953

Convide-me para passar a noite em sua boca
Conte-me sobre a jovialidade dos rios
Aperte minha língua contra seu olho de vidro
Dê-me sua perna como alento
E depois durmamos irmão de meu irmão
Pois nossos beijos morrem mais rápido que a noite

de Déchirures – 1955

Que phallus tocará o sino
No dia em que dormirei sob uma tampa de chumbo
Derretida em meu medo
Como azeitona no frasco
Fará um frio metálico e feio
Não farei mais amor em uma banheira esmaltada
Não farei mais amor entre parênteses
Nem entre os lábios javaneses de uma grama de primavera
Exsurderarei a morte como uma umidade amante
Delimitada sitiada pelas visões de outubro
Encolherei-me enfim na lama


de Faire signe au machiniste – 1975

Tradução : Roberto Bessa

O meu riso vai alto,
Mais alto que os chapéus dos cardeais
Mais alto que a esperança
Os meus seios riem quando o sol brilha,
Apesar dos meus fatos apesar do meu noivo.
Feia que sou, sou feliz.
Deus e os vampiros
Amam-me."

Tradução: Mário Cesariny

terça-feira, 15 de abril de 2008

JOYCE MANSOUR: GRITOS E DILACERAÇÕES


Joyce Mansour (Joyce Patricia Adès) nasceu em Bowden (Inglaterra) em 1928, apesar de sua nacionalidade egípcia. Após terminar seus estudos, estabelece-se em Paris, onde publica sua primeira coletânea de versos Cris (1953), cuja publicação é aclamada pelos surrealistas na revista Médium. A “étrange demoiselle” é saudada por Breton, Michaux, Mandiargues, Bachelard, Leiris; e fascina a todos que participam, ou não, do último período do movimento com sua beleza incomum e seus versos que traduzem com perfeição as erupções de sua sexualidade vulcânica. Encontram-se em sua obra os mais variados registros de uma exploração sem fim dos profundos abismos do ser humano. O próprio corpo é tomado como um desses abismos, assim, como ela mesma afirma: “o inferno das mulheres começa em seu próprio corpo”. A principal característica de sua obra é uma notável liberdade impregnada de um erotismo macabro; uma ferocidade verbal sem igual: bem mais impetuosa quando a poeta dá livre acesso aos seus obsedantes fantasmas, todos ligados, obviamente, ao sexo e a morte.

A amazona comia seu derradeiro seio
À noite antes da batalha final
Seu cavalo calvo respirava o ar fresco do mar
Escoiceando de ódio relinchando seu medo
Pois os deuses desciam dos montes da ciência
Traziam consigo os homens
E os tanques

***

Febre teu sexo é um caranguejo
Febre os gatos mamam em tuas tetas verdes
Febre a rapidez do movimento de tuas ancas
A voracidade de tuas mucosas canibais
O abraço de teus tubos que estremecem que bradam
Despedaçam meus dedos de couro
Arrancam meus pistons
Febre esponja morta inchada de moleza
Minha boca breve ao longo de tua linha do horizonte
Viajante sem medo em um mar de frenesi

de cris – 1953

Não quero mais seu semblante de sábio
Que me sorri através das velas vazias da infância
Não quero mais as duras mãos da morte
Que me arrastam pelos pés nas brumas do
Espaço
Não quero mais olhos lânguidos que me entrelaçam
Crateras que cospem seus espermas frios de
Fantasmas
Em minha orelha
Não quero mais ouvir as vozes murmurantes das
Quimeras
Não quero mais blasfemar todas as noites de
Lua cheia
Toma-me como refém como círio como
Bebida
Não quero mais maquiar sua verdade
Eu faria o grand écart * para lhe impressionar
Senhor

* Agachamento com as pernas estendidas formando um ângulo de 180 graus.
Passo acrobático muito usado por ginastas e bailarinos.

de Déchirures, 1955

Quero partir sem bagagens para o céu
Meu desgosto asfixia-me porque a minha lingua é pura
Quero partir para longe das mulheres com mãos gordas
Que acariciam meus seios nus
E que cospem sua urina em minha sopa
Quero partir silenciosa à noite
Hibernar nas brumas do esquecimento
Penteada por um rato
Estapeada pelo vento
Tentando crer nas mentiras de meu amante

de Rapaces – 1960

Tradução : Roberto Bessa

sábado, 5 de abril de 2008

VEIAS COMUNICANTES (I)

Allen Ginsberg nu do outro lado do muro
Tomando LSD com cinocéfalos e anjos ofegantes.
No muro se lê: Você não é normal.

Uma nuvenzinha de fumaça negra
Sai da boca de cada passante
E suas mãos presas no passado
Fazem parte da nova paisagem
pintada de verde.
Lê-se no muro: Você é diferente?

Alguns passantes põem negro manto noturno.
Outros andam cheios com o peso do próprio
Silêncio e devoram o sexo da parede.

Eternamente barbado Ginsberg iridescente...
Uivando, nas esquinas, mantras para arranha-céus;
Vomitando pedaços crus da realidade
Ao invés de fantasmagóricos enfeites natalinos.

Mais adiante, no muro, está escrito:
Alguns passantes não conseguem ver além
Dos muros. Por isso
Abaixo os muros,
Isto é Poesia.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

PARMI LES TRÉSORS DE LA NUIT

Collages por Rodrigo Mota integrante do Grupo Surrealista de São Paulo.
(EXTRAIT)

Je suis tout seul parmi les arCONes
.........archanges morts
............................air inexistent
....................................mains d’un toubillon
monstres derrière la murraille de verre
J’ai ma tête sur l’épaules de la statue
Car les cauchemars descendent des poteaux
Et les omniscientes tombent numériquement
Nicotine nid-de-poule nimbes et As d’hasard
Je suis mon refuge plus longtemps
Parmi les arcones qui chantent
Et les chattes dans ma bouche
Ma bouche aux mémoires du potage
Les chattes sont les cavernes de chair qui s’entre-dévorent
Je suis rouge nous sommes sombres et les nuits sont longues
Parmi les arcones dévorantes qui chantent
Là où les orang-outans gardiens volent au vent
Entre le froid et la mort acidentelle
Là où les orchidées cannibales ovulent
Où se perd la tête du libertin
Le coeur d’enfant
La putréfaction à genoux
Moi voici prisonnier de mes propes pouces

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

DOIS POEMAS DE DIOGO CABRAL

“O simples esboço do que deveria ter sido ou do que se poderia pensar”
Collage por Roberto Bessa.


QUE OS FIOS SE UNAM NESTA CAPITAL

Não tecerás as cobras
De teus parques distantes
As irmãs Papin aterrissaram
No coito das cartolas

A experiência translúcida
De vivenciar cavalos de batalha
À beira do rio anil
Somente equivale a duas mil almas
Desalojadas pelo silêncio
Viril da guarda nacional republicana

Aconteça que acontecer
Verás pelos becos perdidos
Da ilha
(porque viver numa ilha é alcova eqüidistante)
Filhos descontentes com seus leites maternais

O átrio perecerá de frio
Diante da perda fugaz
Da memória celestial
De constelações carregadas
De mulheres saias bebidas

Os autômatos
Os automóveis
As celas coletivas
Conterão a realidade
A carne e terra da realidade

O chão cuspido pelas gerações
Em sangue resplandecerá
Toda tradição misturada
Às festividades de João
Pedro ao Santo Momo
De fevereiro

Diz um irmão
A realidade é o chão
A realidade é o chão

São Luís, 14 de fevereiro de 2008


ESTUDO SOBRE A BAÍA #01

A tarde beira a baía
Com seus raios dourados
De assombro

O anúncio das trevas vem
Do oeste
As aves fogem das batidas
Incontidas de escuridão
Voam como feras enjauladas
Com brilho de crianças do passado

A tarde passa nas lâminas do veleiro
A tarde passa no tormento inaudito
Das nuvens sacras que denunciam
As incertezas canônicas

Os amores passam sorrindo
Ébrios pelo sagrado cais
Da ilha de São Luís

A podridão encarcerada
Se liberta com o sexo
Telúrico das televisões

Chefes de arma
Os pássaros voam em volta da baía
A perda repentina do firmamento
Enrola os sonhos coração de menino velho
Poente

São Luís, 8 de fevereiro de 2008

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

CADÁVER ESQUISITO À MESA DE DISSECAÇÃO:

CONTRA O PENSAMENTO DOMINANTE.

A Poesia é mais do que escrita


A Poesia faz-se escrevendo como se faz e sobretudo vivendo em permanente estado de rebeldia. No interior resolvendo os liames que nos amaram a uma Razão feita de constrangimentos e falsidades várias, mas também no exterior, combatendo os vários donos do Mundo e da Vida. Mesmo aqueles que se dizem ao nosso lado (na Cultura, por exemplo) e que jogam habitualmente para o lado dos endinheirados (burgueses e não só). A escrita e os escribas já existiam no antigo Egipto. Não consta que tenham poupado Akhenaton e outros que quiseram mudar as coisas para o lado do Espírito. (...)


collage "O Silêncio das Horas mortas" e texto
por Carlos Martins (autor do blog "cadáver esquisito...")

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

COMO CHEGAR A BENJAMIM PERET


É necessário, em plenos anos 80, o atalho da rosa a cujo aroma ninguém resiste. Evita-se, a todo custo, a fábrica de ficar em casa; os reluzentes bonecos da hyper-realização e, principalmente, os espetaculadores do pano. Corre-se aos gritos pelos ossos desse atalho. Mas como, onde e por que? Importante se questionar (mas não tanto). Então...Corre-se aos gritos de várias formas. A saber: amarram-se os gritos de vidro; empalham-se os gritos reflexivos, colocando-os, em seguida, em cima do criado-surdo; separam-se os gritos reais dos pseudo-gritos, como outrora bem o fez Hamlet diante do imponente sorriso da caveira. Corre-se pelas galerias de água escura e entre os manequins da ocasião propícia, sem a amarga preocupação de chegar em algum lugar e ser chamado por Maurício ou cudelume de Estagira. Corre-se, portanto, sem sair do lugar, sem mover uma palha sequer para encontrar o rosto perdido. Em certos momentos, é preciso pôr em prática a minúscula criança do jardim. É necessário o atalho da rosa, como se sabe, e todas as portas ligeiramente abertas. Firmemente, deve-se esquecer o próprio enterro e seguir em frente. Sempre em frente, mesmo que o cotovelo não se mova um centímetro.

Comment arriver jusqu’à Benjamim Peret?

Parmi les champignons dans le placard d’attractions
une voix qui s’élève comme les vitres d’une demoiselle entr’ouverte.
Une voix d’explosion au dessus d’un grain d’arbre qui brûle.
Une voix comme l’aspect sui generis d’une huître accidentelle.
Une voix qui donne une forme française à un oeiloeuf de verre.
Une voix qui sort le soleil de la terre pour replanter ailleurs.
Voici une voix inconnue et voici l’objet perdu dans la fenêtre,
le pied de l'un est sur la bouche de l'autre, c’est-à-dire:
1 ET 1 FONT 69. il y avait une fois une voix parmi
les obstacles à tête d’ail, c’est-à-dire: il y avait un trou imperceptible.
I y avait un petit matin de fantôme qui portait une voix.
Et vous savez le reste: une fois pour toutes le silence s’installe,
et la voix me demande: comment arriver jusqu’à Benjamim Peret?