quinta-feira, 26 de junho de 2008

CONTO



UMA CARTA DE MARAT (FRAGMENTO)


“Caro Arimáspios Smiles
O me perditum! Eis o vômito do dia: Ponta seca. Matéria negra (mortificatio). Meus pêsames, mas o mundo não tem jeito. Tenho sono, mas não durmo (quid est somnus, gelidae nisi mortis imago). Opressão do homem pelo homem (interfectio). Flor de pústulas (putrefactio), pequeno sangue dormente que corre nas veias do poeta barbado. Resta-nos aguardar o relâmpago (combustio) praticado por outrem. Muitas viscosidades na vida secreta dos monstros, As gárgulas despregam de SUAS catedrais (incineratio). E haja monstro! A turba é facilmente manipulada por seus próprios monstros. Perditissimus ego sum omnium in terra!!! Onde estar a seqüência de bons momentos, que encadeados, nos levam a uma espécie de eterno presente? (calcinatio) Por outro lado o trágico; prefiro-o ao tédio. Bem sabes... “ (nesse instante uma bala perfura sua cabeça.)


DURANTE A EXECUÇÃO DO TESTAMENTO DE MARAT


“Pobre Marat.” Disse Guilhotine à senhora Goretti Smiles. “Uma bala perdida o acertou em sua banheira de espanto. Esses malditos projéteis estão por toda parte”.Continuou a falar um pouco nervosa. Uma vez encontrei um deles dentro de uma caixa de conselhos em pó. Pobre Marat. Mas não foi por falta de aviso. Eu mesma o havia alertado quanto a essas inexplicáveis metamorfoses. Outro dia um relâmpago entrou sorrateiramente em seu banheiro e transfigurou momentaneamente o seu rosto. Nesse mesmo dia reconheci os traços de um conhecido torturador da época da ditadura e alguns minutos depois o pavoroso semblante de um célebre verdugo protegido pelo vaticano. Pobre Marat, amarrou o bode e pegou o bonde...O diabo é que esses projeteis do inferno se multiplicam numa velocidade assustadora e ainda tem gente que se orgulha dos adesivos de buraco de bala pregados em suas carroças. Bando de idiotas! ”É verdade”. Dizia a sra Goretti.


O MONSTRORISTA RATTIONE


“... mais do que se locupletar...” Parei um instante nessa estranha palavra quando se deu a confusão. O Sr. Sandoval Gusmão, motorista de coletivo há quase vinte anos, discutia com um sujeito truculento que queria por bem ou por mal ter razão. Não sei que barbeiragem cometera, mas queria porque queria ter razão. O trânsito infernal, às vezes, invoca o demônio da razão que incorpora em tipos como esse aí. Seguiu-se um bate-boca rápido e os passageiros que estavam atrás do motorista pareciam apreensivos, com receio que o pior acontecesse. O cheio-até-a-tampa-de-razão vociferava, tentava, a trancos e barrancos, convencê-lo de que estava com a razão. De repente seu rosto começou a envermelher-se; a cabeça inflava lentamente como se fosse explodir, assim como seus olhos e ombros; as pessoas começavam a ir para a parte de trás do ônibus, assustadas com a estranha transformação que se realizava inopinadamente. A boca do individuo (se é que posso chamá-lo assim) crescera e tomara a forma de uma boca de tubarão com três fileiras de dentes afiadíssimos que se encaixavam quando ele parava de falar. Armara-se, ainda, de ferrões escomunais que saiam de suas costas, cobertas por uma espécie de musgo purulento que exalava fedores de águas estagnadas. Seus olhos esbugalhados brilhavam como candeias e trespassavam o Sr. Sandoval cheios de furor. À medida que a besta-fera tentava convencê-lo que tinha razão, seu aspecto se modificava crescendo em fealdade e horror. Horribile dictu! Eu não conseguia mais descrevê-lo tamanha a rapidez com que se transformava, nunca vira algo tão assustador e prepotente quanto aquela aberração que explodia em metamorfoses constantes e cada vez mais horripilantes. Mais medonho ainda era sua insistência, seu furioso empenho em impor ao outro sua verdade implacável. Foi então que se ouviu um estampido de arma de fogo, curto e seco. A maioria dos passageiros se agachou; outros tentaram, desesperadamente, sair do ônibus, mas não conseguiram (ninguém pensou em usar as janelas de emergência). Quando me levantei, o ogro já saíra desembestado em seu automóvel, ainda vi sua cabeça, uma enorme e repugnante bolha de carne verde e pelosa, do lado de fora de sua maquina ensandecida. As pessoas gritavam enfurecidas para que alguém anotasse a placa do veículo. O coletivo saiu finalmente e os passageiros discutiam o acontecido, tranqüilizavam-se pouco a pouco. O trocador comentava que o ser abjeto tinha disparado um tiro contra o motorista que por pouco não fora atingido. Soube-se, no dia seguinte, que a bala se perdera no caminho, mas fora encontrada no corpo sem vida de Marat.
collage: DADA POst (Roberto Bessa)

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