sábado, 24 de novembro de 2007

VERDADE E BESTIÁRIO

A verdade é um macaco que não se senta. Ela pertence aos deuses abafados pelo tempo, mas ondula pela cidade como um cínico com uma lanterna na mão em plena luz do dia. Trata-se de um enigma com quatro patas e hábitos rigorosamente sonolentos de bichano, capaz de suportar o desespero do poeta ou entender o amanhecer imóvel de uma simples esfera. A verdade anoitece entre as aves cuculiformes e as pequenas pedras que já pertenceram ao mar: anoitece decerto na boca dos homens de olhos vendados e desperta como um relâmpago numa gota de esquecimento, mas não antes de passar de mão em mão. Como um fantasma, está em todos os lugares ao mesmo tempo, branca e calada como o diabo fugindo da cruz. Ela tem os olhos de inesgotável tristeza, a mesma tristeza que se vê numa lâmpada incandescente ou no olhar shakespeariano de um ursinho de melúria. A verdade, algumas vezes, equivale a um tigre que anda livremente pelos vários cômodos da casa e, não raro, é confundido com um dos catassóis do piano. Oportunamente, ao piano, quem a busca perde a conta dos dias. Mas qual a origem da verdade? Certamente não é fictícia. Um piano a engendrou numa vaca, por isso este animal é sagrado em alguns lugares da casa. Há quem diga que a verdade se encontra no interior atávico de um antigo piano e divide o espaço entre as cordas do instrumento com parafusos, pedaços de feltro, uma dúzia de necessidades e um terrível segredo; todos inteiramente entregues aos ensaios de uma tragédia destinada a ser encenada por detrás da cortina. Os acordes dissonantes, produzidos durante os ensaios, em certas horas da madrugada, muito agradam a todos; principalmente, aos cucos e ao escritor Julio Cortázar.

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